Saturday, May 5, 2007

"Abismo" de Rui Filipe

“Esta cidade é deprimente!”
Lisboa fictícia dos anos 40.
Inverno. A chuva escorre freneticamente por sulcos e arestas enrugadas do prédio envelhecido pelo tempo.
O jovem de face agitada olha para a rua através da pequena janela de vidros baços. A luz mortiça da noite que entra na divisão minúscula mal ilumina o interior, lançando imensas sombras através das paredes húmidas e vazias. O quarto alugado, há muito desabitado, enche-se de sons cristalinos que percorrem o pavimento nocturno da cidade.
“Que loucura é esta? O
que é que se passa comigo?
Não durmo há três noites,
a pensar que a qualquer
momento as sombras das
paredes vão ganhar vida
e devorar-me-ão!”
Horácio F. Gajão é um estudante universitário de arqueologia antropológica, e mudou-se para a Lisboa pombalina com o objectivo de concluir a sua tese sobre as superstições que velam a imaginação do Homem, baseado nas crenças medievais que ainda hoje fazem tremer até o mais fervente devoto religioso.
“Não tenho pais vivos,
amigos ou namorada!
Não tenho nada a perder...
Se não sobreviver a isto,
pelo menos saberei a verdade!”
O prédio velho e decadente fica situado na baixa da cidade, mesmo em frente á Sé Catedral de Lisboa. Da pequena janela, avistam-se as torres sineiras. Um dos campanários está vazio, o sino há muito desaparecido.
“Está lá em cima, a
observar-me! Sei que
também pode estar neste
quarto, a magicar a
minha rendição!”
Horácio afasta o olhar ansioso da janela. Num canto escuro, a cama desarrumada, coberta de livros e folhas espalhadas que caem para um chão de madeira húmida e podre, que ameaça ceder a cada passo. Dirige-se para a secretária mal iluminada por uma lâmpada pendurada na parede. Mosquitos e traças agitam-se debaixo da luz conforme se senta na cadeira desengonçada.
“Hoje estarei lá em cima!
«Vê-lo-ei»? Não sei!
Tenho de lá ir, pois todas
as noites eu ouço o seu convite!”
Horácio pega num livro visivelmente antigo que está sobre a secretária e abre-o numa página marcada, revelando uma gravura de uma criatura disforme e alada, com braços como garras e a face coberta de horrendos tentáculos. Na legenda pode ler-se:
«Demónio alado vindo detrás dos Tempos!»
3h40. A chuva cai pesada nas costas de Horácio, que atravessa apressadamente a rua deserta, alcançando as escadas frontais da igreja. Quando sobe ao patamar, olha para cima, contemplando a fachada e o portal, batidos e fustigados pelos elementos.
“Deus me perdoe! Não
tenciono violar a Sua
omnipotência, mas se
não souber a verdade,
também não terá valido
o anseio de acreditar!”
Silêncio e opressão reinam no interior da igreja, que transforma o ruído da chuva num cântico celeste, ecoado nas paredes cruéis e melancólicas.
Horácio procura o acesso para as torres e descobre a passagem para o campanário vazio.
“A superstição das
pessoas faz com que
acreditem naquilo quem
nem sequer vêem! Mas
eu tenho de ver para acreditar!”
A escada de degraus toscos e esculpida em caracol ascende num ângulo íngreme, dificultando a subida. O som da chuva é agora um murmúrio que se vai dissipando nas trevas. O ar fica mais denso, um pesado silêncio invade os sentidos de Horácio, como um pulsar intenso e grave conforme os degraus vão sendo mais difíceis de superar.
”Que raios! Mal consigo
pensar!
Este som, o que é isto?”
A porta que dá acesso ao campanário está fechada há muito tempo. Pó acumulado e teias de aranha são o testemunho de abandono ou esquecimento deste lugar.
Do lado oposto da porta pode ouvir-se algo, uma respiração reverberante, acompanhada de um raspar grosseiro, como se algo gigantesco se movesse dentro do compartimento.
“Meu Deus! É real!
Tenho de ver!
Maldita porta!”
A porta encravada move-se poucos milímetros, mas não cede o suficiente. Horácio tenta um último esforço para a abrir mas é surpreendido por um pungente cheiro nauseabundo, que o retrai. Em pânico, lança-se sobre a porta e num repente, esta escancara-se e em desequilíbrio, Horácio cai no abismo da torre sem sino, não sem antes vislumbrar uma silhueta disforme e alada largar-se no ar nocturno, debaixo do som do Inverno...
FIM